terça-feira, 10 de janeiro de 2012

CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA
Ana Maria Uliana*
UNESP-ASSIS
RESUMO: O objetivo desse estudo é analisar o impacto das ações psicossociais, a partir dos efeitos da implantação do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) nos resultados quantitativos da unidade e no número de internações psiquiátricas, num município de médio porte do interior do estado de São Paulo. O processo da Reforma psiquiátrica no Brasil desencadeou profundas transformações na organização da
assistência no campo da saúde mental. Nesse contexto foi proposto um novo olhar, uma nova concepção da loucura e novos conceitos surgiram para abordá-la. Ao levar em conta à importância da construção e constituição de um novo paradigma, que seja pautado em serviços substitutivos, os CAPS, tendo como seu objeto o sujeito doente e não a doença. Este paradigma emergente traz em sua constituição a possibilidade de questionamento dos saberes teóricos, das práticas técnicas, da cultura, do social e das ações jurídicas no manejo com a saúde mental. Assim, a implantação do CAPS no município implicou nessa mudança teórico-técnica e prática das ações desenvolvidas e, portanto no papel e no vínculo da equipe técnica com os usuários, gerando mudanças na produção de saúde mental. O CAPS tem como suas principais ações a atenção intensiva e semi-intensiva numa proposta complexa e integral à necessidade do indivíduo. Visa
acolher e oferecer tratamento a pessoas com intenso sofrimento psíquico e dificuldade de inserção social, através de uma rotina de atividades terapêuticas expressivas de reabilitação e ressocialização. Essas ações são desenvolvidas por uma equipe multiprofissional, em regime de funcionamento diário. O CAPS foi implantado em 2002.A partir do acompanhamento de dados produzidos pelo programa como produção,
inserção de casos novos e médias de internação psiquiátrica, foram elaboradas correlações entre os anos de 2001,2002 e 2003. Após a implantação do CAPS houve uma crescente redução na média de internações psiquiátricas mensais, sendo que em 2003 elas reduziram em 50%. Em uma análise apenas quantitativa podemos inferir que a implantação do CAPS pôde exercer uma transformação nas ações de saúde mental e
da atenção psicossocial condizente ao processo e propósito da reforma psiquiátrica, ao referendar o objetivo maior da atenção psicossocial que é a reversão do modelo hospitalocêntrico e da exclusão. Com relação aos efeitos qualitativos, a diminuição das internações e as ações psicossociais possibilitaram mudanças na postura, na auto-estima e em uma maior inserção do indivíduo na comunidade; relações mais humanizadas e
próximas entre técnicos e usuários e uma real inserção de alguns usuários no sistema social produtivo.
* eaglle@uol.com.br

Esse estudo, num município de médio porte do interior do Estado de São Paulo, tem por objetivo avaliar, através da implantação do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e do desenvolvimento de ações psicossociais, os efeitos nos resultados quantitativos da unidade e no numero de internações psiquiátricas.
A implantação do CAPS justificou-se pela necessidade de existir um sistema de atenção diária e de atendimento territorial em saúde mental eficiente e competente que, além de reduzir as internações, pudesse oferecer um serviço de excelência nas ações de saúde mental, para a população de Assis. Serviço este, em consonância com os princípios e diretrizes da política de saúde mental, da lei 10.216 de 06/04/01, do disposto pela Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS – SUS 01/2002. Impôs-se, tanto do ponto de vista técnico, quanto do ponto de vista legal, e como uma exigência ética estruturar a assistência no sentido da reversão do atual modelo hospitalocêntrico, privilegiando as novas estruturas e modelos que funcionem segundo a lógica do território. Os objetivos específicos do CAPS são: garantir um cuidado personalizado a pessoas com intenso sofrimento psíquico e dificuldade de inserção social, com o intuito
de buscar uma viabilização de inclusão do sujeito no processo produtivo, proporcionando dessa forma, o resgate de sua cidadania; realizar uma abordagem multiprofissional da clínica dos casos integrando as diversas áreas de conhecimento/atuação, possibilitando assim uma maior compreensão do sujeito em
questão; estimular a participação dos usuários em atividades produtivas seja em oficinas abrigadas, seja criando convênios ou outras formas de participação em empresas públicas, privadas ou filantrópicas; estimular formas alternativas e cooperadas de moradia aos usuários que delas necessitem; estimular e promover eventos culturais e ou recreativos próprios ou em articulação com outras organizações sociais, que
proporcionem intercâmbios entre usuários, famílias e comunidade; desenvolver, em parceria com órgãos formadores, um programa docente-assistencial com linhas de investigação que contemplem o campo da saúde mental na sua complexidade, visando a busca da reabilitação psicossocial; ser, em parceria com órgãos formadores, centro formador de profissionais e campo de estágio; ser referência aos equipamentos de saúde do território, responsabilizando-se pela regulação da demanda e da organização da rede de cuidados em saúde mental; e, por fim, ser núcleo de sistematização de práticas de atenção intensiva.

O CAPS desempenha o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial de saúde mental do município. Atende adolescentes e adultos com distúrbios psiquiátricos, crônicos e agudos e os usuários abusivos de álcool e drogas são atendidos no programa ambulatorial. Os usuários são atendidos a partir de encaminhamentos feitos por outras unidades; profissional da saúde mental dos postos de saúde; pronto socorro, enfermaria psiquiátrica do Hospital Regional, hospital psiquiátrico, Conselho Tutelar, Poder
Judiciário, ONGs e demanda espontânea. É importante salientar, que no processo de tratamento, o usuário será tomado como sujeito de toda proposta terapêutica e não como objeto tornando-se assim, um ator
participativo dentro da reabilitação psicossocial.
O CAPS conta hoje com uma equipe multidisciplinar composta por: um Coordenador com formação em psicologia, quatro Psicólogos, um Assistente Social, dois Psiquiatras, um Clínico Geral, uma Enfermeira, um Farmacêutico, três Auxiliares de Enfermagem, dois Agentes Administrativos e um Técnico Administrativo.
As atividades realizadas são: oficinas terapêuticas, grupo de terapia ocupacional; os atendimentos de psicoterapia grupal e individual; consultas médicas psiquiátricas e, havendo necessidade, encaminhamento para consultas clínicas, atendimento familiar; a visita domiciliar; e outras ações e intervenções que assumam relevância para cada paciente.
Impactos das ações do CAPS
O CAPS atende em média 1.850 usuários/mês em ações multiprofissionais e psicossociais, não intensivas e semi-intensivas. Os pacientes usuários de substâncias psicoativas são atendidos em regime semi-intensivo e não intensivo, pois devido à dinâmica psicopatológica não aderem a grupos heterogêneos (grupos e oficinas mistos mostram-se ineficazes). A unidade não dispõe de recursos para desintoxicação e conta com um número reduzido de técnico disponível para atendimento dessa demanda. Atualmente tem 45 usuários psicóticos crônicos e agudos em regime intensivo. A partir do acompanhamento sistemático de dados produzidos pelo programa - produção, inserção de casos novos, médias de internações psiquiátricas - temos alguns parâmetros, mesmo que quantitativos e concretos para tentar avaliar a eficácia do serviço e definir parâmetros epidemiológicos.O indicador de gestão sobre o número de internações psiquiátricas em 2001 foi
definido pelo estado em 5,49 e o município estudado atingiu 4,47. Apesar desse indicador municipal estar abaixo do parâmetro definido a tendência deve ser decrescente. O levantamento realizado apontou um índice crescente de internações, de 2000 para 2002. Para tanto analisou se dados epidemiológicos que possibilitaram uma leitura mais complexa. No ano de 2002 o CAPS produziu 16.801 procedimentos. A
organização dos serviços, bem como a qualidade do mesmo gerou um aumento na produção e a inserção 631 casos novos (levantados através das FAAs – Ficha de Atendimento Ambulatorial). Em relação ao total de internações psiquiátricas ocorridas em cada ano foi elaborado um percentual por diagnóstico que nos revelaram:
ANO*
DIAGNOSTICO
2001 2002 2003
Álcool e drogadependentes 53,78 % 64% 66,5%
Psicóticos 39,14% 27,5% 26,68%
Depressão e ansiedade 7,08% 8,05% 6,89%
• Em 2000 não era efetuado pela a unidade o levantamento de internações por CID10
Podemos observar na tabela acima que houve uma tendência crescente nas internações para álcool e drogadependentes de 12,72% no período compreendido entre 2001 e 2003. Para as internações nos casos de depressão e ansiedade observamos que houve um acréscimo de 1,33% de 2001 para 2002 e um decréscimo de 1,16% de 2002 a 2003. No entanto, houve um decréscimo nas internações para psicóticos de 12,46% no período de 2001 a 2003.
Considerando o aumento de produção de casos novos, bem como a atual e crescente problemática do consumo de drogas, como reflexo de um contexto social em crise, que extrapolam os limites dos serviços de saúde, necessitando de uma política que integre os serviços em rede; considerando que a demanda de drogadependentes é referenciada no tratamento ambulatorial da unidade e que a proposta do CAPS II
prioriza a atenção aos psicóticos crônicos e agudos; considerando que em 2003 as internações para psicóticos representaram apenas 26,68% do total de internações da unidade, podemos inferir com esse levantamento que um dos objetivos do CAPS foi cumprido. Ao diminuir as internações para psicóticos propicia-se uma tendência de reversão do modelo hospitalocêntrico.
No ano de 2003 a unidade realizou 17.413 atendimentos, sendo 3.41% a mais que em 2002.Obteve um decréscimo significativo nas internações psiquiátricas, de 55,26% em relação a 2002, como demonstrado abaixo:
ANO Total de internações Média mensal
2000: 333 28
2001: 396 33
2002: 447 38
2003: 203 17
Se nos limitarmos apenas aos dados quantitativos, poderíamos inferir que a implantação do CAPS exerceu um papel transformador no campo da saúde mental e da atenção psicossocial condizente ao processo e propósitos da reforma psiquiátrica.
De fato, esses dados referendam o objetivo maior da atenção psicossocial, a desospitalização e a reversão de um modelo hospitalocêntrico e de exclusão. Mas quais outros parâmetros podem ter para avaliar os serviços, além dos clássicos epidemiológicos e administrativos? Como criar indicadores que possibilitem reflexões mais complexas e subjetivas (qualitativas) para uma real avaliação do serviço implantado.
O prédio onde atualmente funciona o CAPS é herança de um projeto de hospital psiquiátrico que apesar de adaptado e reformado, e atualmente até adequado, preserva seus longos corredores, uma estrutura hospitalar e a “exclusão” do centro da cidade, típico das instituições asilares.

A equipe, com algumas renovações, devido a saídas e novas contratações, preserva funcionários desde a época da inauguração do ambulatório. Por sua vez os poderes públicos apresentam distorções nos discursos e práticas em relação ao efetivo investimento na saúde mental, que pela primeira vez ao longo dos anos ganhou destaque nas prioridades de investimento ministerial devido a uma luta militante insistente que convenceu teórico e tecnicamente, mas principalmente pelo vislumbre na economia de AIHs psiquiátrica (autorização de internação hospitalar) e pelos louros políticos colhidos em prol de realizar um discurso “politicamente correto”. Dentro dessa “colcha de retalhos”, com todos os atravessamentos citados existe
um trabalho que ganhou visibilidade; apesar de funcionar “apagando incêndios”, sem recursos técnicos e materiais suficientes e a sensação gritante de ter que dar conta de uma intensa demanda crescente.
Há fiscalizações e cobranças de produção, de resolutividade e de respostas para problemas que não são da governabilidade da equipe, que se sente pressionada e sem respaldo gerencial. A equipe composta de velhos e novos elementos é impregnada pelo passado; enquanto alguns incorporam a história e seus movimentos, e como uma superposição de “camadas” transpõe a mudança e adaptam-se as novas propostas, em outros as
“camadas históricas” sedimentam-se a ponto de impedir um movimento e de internalizar a mudança. Isso gera movimentos distintos nos profissionais; ora dispares e desintegrados, abalando o que deveria ser uma equipe integrada.
Apesar de tudo isso, a implantação do CAPS gerou mudanças interessantes e produtivas: A diminuição progressiva das internações psiquiátricas, inclusive de pacientes com histórico de dezenas de internações, com quadros clínicos cronificados, está há mais de um ano estáveis e fora dos hospitais; Mudança na postura, auto-estima e inserção do indivíduo na comunidade; Relação mais humanizada e próxima entre
técnico e paciente (diminuição no distanciamento hierárquico); Real inserção de alguns usuários no sistema social produtivo. O CAPS assistiu a casamento de pacientes, formação de banda musical, circulação de usuários em espaços sociais jamais experimentados, melhora em relações familiares complicados, produção de poesias, pinturas e artesanatos; conquista de prêmio nacional de artes; divulgação do trabalho em jornal de circulação nacional, participação de usuário em conferência nacional; fundação da Associação dos Usuários, amigos e familiares da Saúde Mental, etc.

Vivemos um período de euforia e idealismo, onde a sensação era de estar no caminho correto. Porém, também convivemos com profissionais e pacientes que não aderem a proposta psicossocial.E é nesse contexto rico, complexo e antagônico que se faz necessário refletir os resultados das ações de saúde mental para a efetiva implantação da proposta psicossocial.

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