terça-feira, 23 de outubro de 2012

Quitéria (Lucas Bronzatto) de Aline


Quitéria chora pela belezura que não está mais

no rosto no espelho que não olhava há 28 anos
aprisionada abandonada mutilada impregnada de haldol
de desprezo de desgosto chora quando lembra que era
apaixonada por quem era nem lembra quem era

nem o que é paixão no chão grita se desespera
espera por uma vida nova nem lembra o que é vida o que é sábado
não sabe de onde veio essa velha o que é vela o que é aniversário
onde revela o velho negativo com seu rosto apagado

da memória da família onde nunca coube
Quitéria chora e agora a hora é de recomeçar
Cavocar no que restou da Quitéria que não tem belezura
no rosto no espelho só tem as marcas cicatrizes olheiras e sulcos
facetas da injustiça que o Sistema cravou pra sempre na sua face
usando mãos que fazem de letras ilegíveis lucros

lobbies e livraimes desses males o mais rápido possível
apagando pouco a pouco o muito que há dentro
de quitérias, joaquins, beneditas, severinos, siclanos, beltranos
fulanos fumando, bebendo, gritando, chorando, sofrendo;
usando roupas coloridas demais, de menos, tirando a roupa

no meio da rua se indignando, amando demais, de menos
calando todos.
calabocas injetáveis
calabocas comprimidos
calabocas em gotas com gosto de tutti-frutti

--

Esse poema é inspirado em uma das histórias de usuários dos serviços de saúde mental, que aconteceu em São Bernardo do Campo - SP, município onde trabalho. Eu não vivi, mas me contaram e eu tentei expressar o que me cortou a carne em um poema.

Quitéria (nome fictício) morou por muitos anos no hospital psiquiátrico existente na região. Foi retirada de lá para morar em uma Residência Terapêutica, um serviço substitivo ao hospital psiquiátrico, uma casa onde mora com outros portadores de transtornos mentais, parte deles ex-moradores de hospitais psiquiátricos. Momentos depois de chegar na casa em que ia morar, Quitéria desabou em lágrimas, chorava e gritava desesperadamente. Gritava que queria de volta sua belezura, que tinha perdido sua belezura. Como em quase todas as casas, diferente das prisões e hospitais psiquiátricos, lá tinha um espelho e Quitéria se olhou no espelho depois de quase 30 anos e não se viu mais. Seu rosto mudou e sua belezura se foi depois de tantos anos de prisão.

Quitéria é só uma das muitas e muitos que perderam sua identidade nos hospitais psiquiátricos de nosso país e de tantos outros países. Há muita gente disposta a lidar com a saúde mental de outra forma, sem exclusão, é longa a trajetória da Luta Antimanicomial no Brasil e no Mundo, e também já há um tempo existe a Lei da Reforma Psiquiátrica, que vem para reorientar a atenção dada a estes usuários, regulamentado a criação de novos serviços como a Residência Terapêutica, os CAPS, Centros de Convivência (uma busca no google e você acha!). 
Afinal, como dizem, de perto ninguém é normal...

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